Ao Som Da Lira - Trovas * José Fabiano - MG 1987

*

SOM DA LIRA


JOSÉ FABIANO AO SOM DA LIRA




         Em abril deste sofrido 87, o incomparável declamador José Brasil, meu colega e bom vizinho, mostrou-me um livro de versos, propondo: "Se gostar do conteúdo, aqui está o endereço do autor". Gostei tanto, que escrevi a José Fabiano, poeta uberabense, radicado em Belo Horizonte. Mandei-lhe um livro meu. Sem demora, recebi, em troca, seus dois livretos "Caixinhas de Trovas" e "Ao Pôr-do-Sol", lançados, respectivamente, em 1984 e 1986.

         O prefácio de "Caixinha de Trovas", intitulado "A lira otimista de José Fabiano", é de abalizado mestre Fausto De Vito, que enaltece a "nova centúria lírico-didática" do trovador, já autor de "Peregrinando...", lançado em 1974. É um escrínio de jóias, de transbordante genialidade, conforme estas duas amostras colhidas ao acaso:

         "NA AJUDA AO NECESSITADO,
SUGIRO-TE ESTA POSTURA:
NÃO LHE DÊS PRONTO O MELADO;
ANTES DÁ-LHE A RAPADURA".

O bom conselheiro é também exímio galanteador:

"TALVEZ RIREIS AO SABERDES
COMO EU ME SINTO EM APUROS,
SE POUSAIS OS OLHOS VERDES,
EM MEUS OLHOS JÁ MADUROS".

         O terceiro lançamento de José Fabiano, "Ao Pôr-do-Sol", tem expressiva apresentação de Lucy Sother de Alencar Rocha, laureada como Magnífica Trovadora das Alterosas. Diz ela como lhe foi difícil escolher cem entre trezentas trovas apresentadas pelo Autor. E tem razão. Mas selecionou obras-primas, assim:

"SUA ESPOSA QUER CARINHO,
MOÇA OU VELHA, SEJA O MESMO.
SE VOCÊ QUIS O TOUCINHO,
AGÜENTE AGORA O TORRESMO..."

         Espiritualista, humorista, lírico, José Fabiano é sempre o ourives da trova, mas a hora de acrescentar sua incrível habilidade na confecção de hai-kais, sonetos e outras formas da arte poética.

         Eu me dispunha a indagar do poeta – por carta ou telefonema – quando passará das trovas a outros cantares; ia dizer quanto é lindo seu sonetilho intitulado PALAVRA FRATERNA, quando recebi esta solicitação:

         "Caríssimo Jacy: "AO SOM DA LIRA": 100 trovas à espera do carinho de um padrinho, para virem à luz. Pergunto-lhe, poeta, se quer examiná-las, e, se não lhe soarem mal, levá-las à pia batismal de um prefácio..."

         Mandou-me duzentas trovas, pedindo a escolha de cem. E agora, José? Tem razão a magnífica Lucy. A tarefa é difícil, mas sumamente agradável. De modo que... ao incluir um centúria, excluí outras cem. E para que o leitor avalie quanto são valiosas as redondilhas de José Fabiano, propositalmente transcrevo aqui duas lindamente líricas, porem excluídas do acervo – excluídas por mim:

         "TUAS MÃOS ASSIM TÃO BELAS,
         NOS SALÕES ONDE ÉS RAINHA,
COMO DIFEREM DAQUELAS
DE MINHA MÃE NA COZINHA!"

E aqui está a segunda das cem rejeitadas:

"COMO PEDIR-TE A LOUCURA
DE LENIR-ME A DOR IMENSA,
QUANDO SEI QUE MINHA CURA
IRÁ SER TUA DOENÇA?..."

Que me perdoem o autor e os leitores... ao som da lira...
Niterói, julho/1987
                            Jacy Pacheco
***
001
Essas flores tão viçosas
irão murchar, com certeza,
antes do tempo, invejosas,
diante de tua beleza!
002
Por que razão, companheiro,
quando alivias a dor,
dás a esmola de dinheiro,
negando a esmola de amor?
003
Entre velhos e rapazes,
noto defeito que lavra:
apesar de terem "frases",
pouquíssimos têm "palavra"...
004
Quando o Pai foi informado
de a Bíblia ser toda e em tudo
Sua Palavra, magoado,
achou melhor ficar mudo...
005
Cometi, não por vingança,
um crime que foi surpresa:
matei a tua lembrança,
em legítima defesa...
006
O ensino do Cristo encerra
verdade clara, sem véu:
- Se fores o "sal" da Terra,
terás açúcar no Céu!
007
Querida, como te iludo
acerca do que se passa:
meu amor não ficou mudo;
eu é que lhe pus mordaça...
008
"Que, Senhor, queres eu faça?"
Ao Cristo assim ninguém sonda,
temendo ficar sem graça,
logo que Ele lhe responda...
009
Por isso o poeta, senhores,
tem a sorte de um maldito:
só lhe aceitamos as dores,
quando seu pranto é bonito...
010
Não te queixes da existência:
estás pagando o passado.
O peso da penitência
não excede o do pecado!
011
Há momentos, que são poucos,
em que sou feliz. Há sim!
Porém, talvez como os loucos,
neles nem lembro de mim...
012
Às despesas não se poupa...
quanta asneira já não fez!
À mulher dá tanta roupa,
só para ter-lhe a... nudez.
013
Géraldy, com que primor,
diz que da saudade a meta
é ser não historiador,
mas tão simplesmente... poeta!
014
Deus dispensa tua zanga
com o incréu de quem não gostas.
DEle não és nem capanga
nem jagunço ou guarda costas...
015
Tua lembrança se gasta...
Irei ter serenidade?
Como, se aquela se afasta
e dá lugar à saudade.
016
Vejo o Brasil sob o império
de Momo, desta maneira:
prova levar mais a sério
aquilo que é brincadeira...
017
Chorou Machado de Assis,
junto a leito derradeiro,
sem ter sorrido, feliz,
ao pé de um leito primeiro!
018
Templos são fechados, mas
permaneçamos alerta:
As casas de Satanás
têm a porta sempre aberta!
019
Ser "vovô" – eu não o escondo –
dá-me repulsos secretos...
Mas que bom, se o amor vai pondo
"Vô" na boca de meus netos!
020
De mim, ó meu Deus, tem dó,
sabes que sofro bastante!
Minha "escada de Jacó"
faze que seja "rolante"...
021
Vede a estaca que suporta
esse arvoredo. Estás vendo?
É resto de árvore morta
que ajuda a que está vivendo!
022
Estou triste, como vê,
por causa deste motivo:
não posso usar com você
o pronome possessivo...
023
Filha, não sejas tão dura,
quando fraqueja teu pai.
No chão, a fruta madura,
e não a verde, é que cai...
024
O tempo deixa ressábio,
sem alívio, sem consolo:
a gente fica mais sábio
para saber como é tolo...
025
Eu, que só busco a verdade
no ensinamento dos sábios,
quero ouvir a falsidade
e a mentira de teus lábios...
026
Cercado de tanta gente
que jamais tinha visto antes,
senti-me tão diferente
dos que são meus "semelhantes"!..
027
Os teus olhos azulados,
quando estão nos meus, perdidos,
quantos sonhos descorados
viram sonhos coloridos!
28
- Fala de algo edificante
e não do teu sentimento.
(Só lhe falo, doravante,
de areia, pedra e cimento...)
029
Senhor Jesus, não se zangue,
mas comigo tenha calma:
para que Seu corpo e sangue,
se o que me encanta é Sua alma?
030
Quer a fé, quer a descrença,
quanta vez não são ensejos
de a gente, mais do que pensa,
expressar os seus desejos.
031
Não concedas cego apoio,
a quem julgas novo amigo.
No princípio, eis quando o joio
parece mais ser o trigo.
032
À maneira de algum relho
que fosse vibrado a esmo,
muita gente dá conselho,
poupando sempre a si mesmo...
033
Entendo até que me iludas,
quando tiveres o ensejo.
Mas, traindo como Judas,
pelo menos, dá-me um beijo...
034
O próximo, para mim,
embora eu não seja monge,
muita vez é, mesmo assim,
quem desejo ver mais longe...
035
Que valho eu, pobre coitado,
na Bolsa da gente ingrata?
Nela Jesus foi cotado
em trinta moedas de prata...
36
- Fundiram em ouro um "bezerro"
e o adoraram. Por que foi?
Porque era, sem nenhum erro,
mais barato do que um "boi"...
037
Quando, sentada, me fitas,
como se ouvissem conselhos,
vejo-te as pernas, aflitas,
juntarem depressa os joelhos!
038
Deus fez o homem dependente
em sua necessidade,
a fim de que, lentamente,
fosse aprendendo a humildade.
039
Tudo acaba, tudo cessa,
mas é fácil de notar
que o prazer passa depressa,
e a dor passa devagar!
040
Procuro em todos os lados,
mas sem nada conseguir,
onde foram sepultados
os que "morreram... de rir".
041
Este fato é contra a regra,
mas percebi, outro dia,
como a Tristeza se alegra
de me fazer companhia!...
042
É o cão o melhor amigo
do homem. Negá-lo quem ousa?
E aquele dirá consigo
sobre o homem a mesma cousa?..
043
Se a Caridade escutasse
o parecer da Justiça,
talvez jamais ajudasse
os devotos da Preguiça.
044
Temo ouvir, e com razão,
de teus lábios escarninhos:
- Vejam esse homenzarrão
a me fazer uns versinhos!...
045
Como em Fernando o "P" soa,
aquele "P" de Poesia!
Para ser esse Pessoa,
de pessoa eu mudaria!
046
Duas coisas podem vir
a, de fato, me frustrar:
palhaço que não faz rir,
poeta que não faz chorar!
047
Implora o Brasil à Musa
a glória dos grandes nomes.
Euterpe não lha recusa:
dá-lhe Antônio Carlos Gomes!
048
A "Santa Ceia" foi santa,
sem um desaire sequer,
por razão que não me espanta:
lá não havia mulher...
049
Amor, não sei se alguém sofre
um desejo louco assim:
fazer de meu corpo um cofre,
para tê-la sempre em mim.
050
Aos pés, Jesus tira o pó.
dos discípulos ingratos.
Mas quem lava – vejam só! –
depois as mãos é... Pilatos.
051
Tenho sangue português.
Só não sei a quantidade.
Não será pouca, talvez,
pois me dói tanto a saudade!
052
Consigo têm certos zelos
os que se julgam Apolos:
cuidam sempre dos cabelos,
mas nem sempre dos miolos...
053
As minhas obras completas
formarão um livro fino.
Já falaram mil poetas
desta dor, que é meu destino!
054
Quando eu morrer, que ninguém
julgue que estarei na cova.
Em algum lugar do Além,
ficarei compondo trova.
055
Tanta força estou gastando,
na vida, para ser forte,
que temo não tê-la, quando
tiver que enfrentar a morte!
056
O auxílio que tenho dado,
sem que me seja pedido,
às vezes me tem deixado
Cirineu arrependido...
057
"Deusa" - escrevi-lhe em cartão,
dizendo dos sonhos meus.
E ela este anagrama, então,
compôs: fez de "deusa" "adeus"...
058
Hoje, a mulher, em moral,
não provoca nenhum baque,
ao buscar na "horizontal"
a"posição" de destaque...
059
De meu amor, quis o implante
fazer-te no coração.
Não previ, pobre ignorante,
problemas de rejeição...
060
"Põe a mão na consciência",
mas, depois, presta atenção:
pode haver conveniência
de usares água e sabão...
061
Mãe, se dor fosse julgada,
não sei qual a mais doída:
se a que te dei na chegada,
Se a que me dás na partida...
062
Se ignora o soldado raso
quais são os planos de guerra,
vamos saber, por acaso,
os planos de Deus, na Terra?
063
- Quando findará o horror
da vida que nos oprime?
- No dia em que amar não for
insulto, pecado ou crime!
064
Quando a dor faz coleção,
é coisa que se adivinha:
mesmo quem for "figurão"
não passa de "figurinha"...
065
Quando me vês, como gostas
de me fazer mil ofensas!
Só que te olhar pelas costas
não é ruim, como pensas...
066
Quem ajuda, com supor
que ajuda vai ter também,
faz a si mesmo um favor
antes de fazer um bem.
067
Ao dizer-me: - "Vou pensar",
você me trouxe descrença:
a mulher que diz amar
será que, de fato, pensa?...
068
De amor, cheguei junto dela
em pleno "estado" febril.
Antes, quis saber a bela,
do meu "estado"... civil!
069
Na rua, sempre achas meio
de evitar-me, ao teu sabor.
Mas, mudando de passeio,
não mudas o meu amor!
070
Presumo que falo em nome
da razão e da justiça:
- Dê comida a quem tem fome,
jamais a quem tem preguiça.
071
Desejando-me ventura,
partiste. Quase sorri...
Conseguirei, porventura,
ser venturoso sem ti?
072
Para aquele que envelhece,
as coisas se tornam feias:
o que no corpo endurece
são, infelizmente, as veias...
073
Há casamento na Terra
que deste modo se faz:
casal que entrará em guerra
se une ante juiz de paz...
074
Teus lábios me dizem tudo,
tudo aquilo que desejo,
se fazes o gesto mudo
de juntá-los para um beijo!
075
Do trigo, o exemplo não calha,
como forma de consolo?
É quando cai na fornalha
que o pão adquire "miolo"...
076
Você pode explicitar,
em resumo, o que Deus quer?
O próximo devo amar,
mas não a sua mulher?...
077
Há muito, vejo motivo
de crer em "prisão sem grade".
Afinal, como é que eu vivo?
- Livre, mas preso à saudade...
078
A reencarnação me influi
desejo contra o qual vou:
para que saber quem fui,
se ainda nem sei quem sou?...
079
Que fazer desses encantos?
Onde deter-me? Ai de mim!...
Em teu corpo, eles são tantos,
sem princípio, meio e fim!
080
Sê, se te sentes capaz,
fiel à tua querida,
até a morte, e, então, terás
uma "coroa" na vida...
081
Teus olhos são dois primores,
cuja cor não sei dizer.
Por que, sendo furta-cores,
não me furtam o sofrer?...
082
A dor que mexe contigo
talvez não seja daninha:
quando moído é que o trigo
se torna pura farinha.
083
Tronco que está cai-não-cai,
de árvore já ressequida
não é a imagem de um pai,
sozinho, no fim da vida?
084
De repente, a cabra bale:
- Desse jeito, amor, não pode.
Mamãe, pastando no vale,
disse que assim "dá um bode"!...
085
Talvez do orgulho eu consiga
dar um exemplo frisante:
caso o sentisse, a formiga
se julgaria o elefante...
086
Ó ilusões da mocidade!
se sois acaso tolice,
que direi, na minha idade,
das ilusões da velhice?
087
O vaidoso, que nos frauda,
é cometa, não se esqueça:
impressiona pela cauda,
mas quase não tem cabeça...
088
Em assunto de soldado,
acho muito divertido
que mais seja homenageado
logo o que é "desconhecido"...
089
Senti, ao ver-te, capricho
do qual agora sorrio:
quis olhar, na igreja, o nicho
que tu deixaras vazio...
090
Não te parece sentença
da Medicina, impassível?
- A saudade lembra doença
só pelo amor transmissível!
091
Fizeste o sinal da cruz.
Que belo gesto cristão!
Mas, ao vê-lo em ti, me pus
a ter desejo pagão...
092
Ó sábios do mundo inteiro!
Respondei-me, antes de tudo:
- Se satanás é solteiro,
como pode ser "chifrudo"?...
093
Por causa desta paixão,
algo talvez me aconteça:
se ganhar-te o coração,
temo perder a cabeça...
094
Tua cruz, por que enjeitá-la?
Não a trates com desdém.
Irá ser tua bengala,
quando estiveres no Além!
095
Aluguei o coração
ao amor, na mocidade.
Mas este, sem permissão,
o sublocou à saudade...
096
Pergunta a esposa fiel,
com tristeza no semblante:
- Bem, nossa lua-de-mel
entrou no quarto minguante?...
097
Acho, às vezes, que ser poeta
estranhamente consiste
em sentir uma secreta
alegria de ser triste!
098
Desejas ferir alguém,
de modo oculto e indireto?
junto dele, fala bem
do seu maior desafeto...
099
Teu amor me lembra o vento:
já foi como furacão!
Contudo, neste momento,
não passa de viração...
100
Passaram por meu caminho
dois jovens enamorados.
Mostravam tanto carinho,
que vi não eram casados...
***

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